domingo, 19 de maio de 2013

Receitas com história dentro



Nunca fui dada a seguir à risca as receitas que vinham nos livros, sempre gostei mais de inventar, de dar um toque pessoal aos cozinhados, baralhar temperos e fazer combinações improváveis. Sempre preferi trocar receitas entre amigas e experiências que correram bem, porque regra geral é difícil encontrar metade dos ingredientes que são pedidos nos livros e alguns passos são difíceis de dar com o jeito. Isso aborrece-me, pois para mim o verbo cozinhar anda sempre de braço dado com o verbo no infinitivo descomplicar.

A minha casa está cheia de perdidos e achados. Há dias andei a arrumar algumas prateleiras cá em casa e nestas coisas descobrem-se sempre coisas que nem fazíamos ideia que tínhamos. A prateleira da cozinha escondia sorrateiramente os segredos de culinária deixados pela minha mãe. Acabei por herdar dois livrinhos feitos artesanalmente por ela. Um verdadeiro luxo nos dias que corre. Já ninguém se dá ao trabalho de personalizar objectos para deixar Às gerações que se seguem. Já ninguém quer saber de livros de receitas porque a Internet resolve sempre. Já ninguém se preocupa com a maneira tão impessoal que tratamos as coisas e às vezes até as pessoas. Já ninguém se preocupa em deixar um bocado do que foi, uma marca, uma recordação que nos faça atenuar a saudade. Cada um dá a importância que quer às coisas. Neste caso, é impossível ficar indiferente. A história destas receitas acariciam a minha infância, o antes de mim, o durante e o depois, agora, sem ela. É um caderno de escola com argolinhas, formato A5, forrado a papel vegetal que conta receitas como quem conta uma história. Na capa, vêem-se umas letras garrafais já gastas pelo tempo, desenhadas a lápis de pau vermelho "Livro de Culinária". No canto inferior esquerdo está desenhada uma flor, um malmequer, na mesma cor. Na primeira página pode ler-se "O Meu Caderno de Econumia Doméstica", sim, econUmia, pintado de várias cores com caneta de feltro. O livro está completamente personalizado e escrito à mão. A primeira receita é um delicioso caldo verde que até teve direito a ilustração desenhada à mão - uma sopinha a fumegar. Mais à frente descubro a sopa de tomate com ovo escalfado que eu odiava de morte. Lembro-me bem de fazer fitas à mesa e de ser das únicas vezes em que ficava sozinha à mesa a fazer tempo e a mexer a sopa com a colher com ar de enfado. Engolia a sopa a muito custo e arrepiava-me toda. Há males que vêm mesmo por bem, ela sabia que um dia eu ia adorar. As mães sabem sempre tudo. Hoje em dia lambo o prato, se for preciso.

O outro livro tem uma capa rija, castanha e está igualmente todo escrito à mão. Receitas de perder de vista. Dois tesouros. Ambos cheios de vida. Encontro receitas e sei de cor cada história, de qual foi a última vez que as vi em cima de uma mesa, das festas onde havia destas comidas que nunca mais acabavam. Ela adorava cozinhar, nas vésperas das nossas festas de aniversário ficava até às tantas da noite a fazer sobremesas, não podia faltar nada. Ela punha aquele amor incondicional em tudo. A dose certa. A cozinha era o espaço dela. Depois de educar crianças talvez fosse o que mais gostasse de fazer. Os meus olhos correm estes cadernos pautados de fio a pavio e tudo soa tão familiar, é tudo tão meu, é tudo tão nosso.

As recordações não se guardam só em caixinhas, vêm muitas vezes em livros de receitas, não têm cor, nem cheiro e sabem a infinita saudade.


Mafalda Ramos

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