quinta-feira, 12 de julho de 2012

O melhor de dois mundos à mesa




Sempre que abro a porta da minha casa os meus convidados vestem a pele do bon vivant madeirense. Cá em casa respiram-se ares insulares. Quem nunca foi à ilha não conhece um dos sítios onde se come melhor em Portugal. No top dos meus favoritos estão aleatoriamente Trás-os-Montes, Madeira e Alentejo.
Assumi há meia dúzia de anos o meu fanatismo por Trás-os-Montes. Teve de ser. Quando pisei aquelas terras, foi amor à primeira vista. Um amor correspondido. Receberam-me como se fosse um deles. Acho que se eu não fosse madeirense, só podia ser transmontana. Não me vejo noutro registo. Talvez por ser uma terra de gentes que se parecem muito com as gentes da minha terra. Gente que sabe viver e comer como manda a lei. Gente que dá sem estender a outra mão à espera de receber. Gente que partilha tudo o que tem e não faz mais porque não pode. Gente como eu gosto. Gente que honra tradições e costumes. Gente que é gente. Gente que não tem vergonha do que são, nem de onde pertencem. Sem pretensões, são assim só porque sim e porque não sabem ser de outra maneira.
No que toca a iguarias uma pessoa dá em gorda sem se aperceber. É impossível desdenhar a típica alheira de caça e os chouriços e a família toda dos enchidos e eu sei lá mais o quê. Os pastéis de Chaves são de ir às lágrimas. O azeite é tão saboroso que só apetece molhar no pão e lambuzar-me toda. O folar de Valpaços é o pecado em forma de alimento. A feijoada é de comer até de olhos fechados para saber melhor. Lá, tudo é de bradar aos céus. Pensar em Trás-os-Montes e sentir água na boca é tão natural como a nossa sede. O cérebro entra em colapso e abrem-se as portas da imaginação. Devíamos poder fechar os olhos. Pedir. Estalar os dedos. Abrir os olhos. Sentir o peso da alegria e da sua liberdade condicional. Ver que aquilo que estávamos mesmo a precisar, é aquilo que está precisamente diante dos nossos olhos. Para pessoas como eu, bons garfos, bons vivants, este exercício podia repetir-se vezes sem fim. Do "penso logo existo", passávamos para o "penso, logo tenho". E plim, um dia mau podia ser sempre compensado por uma mesa atafulhada de comidas transmontanas.
No reverso da medalha está a Madeira. Linda que só ela. Minha. Imaginá-la é visualizá-la em forma de bolo do caco com manteiga de alho. Consigo viajar mentalmente por tudo aquilo que me faz perder a cabeça à mesa. É a espetada. São os filetes de espada. É carne de vinho e alhos. São as cavalas com molho de vilão. É o milho frito. É o atum. É o pão caseiro de batata doce. São as broas de mel. São as lapas. É a poncha. Tudo isto num bocadinho de terra plantado no oceano atlântico. Agora, imaginem, como é que seria juntar o melhor de duas terras?
Hoje deixo-vos ainda uma pequena nota de reflexão:
A vida devia girar à volta dos pratos. Era simples. As pessoas eram mais felizes. Às vezes pergunto-me se as pessoas que não gostam de comer são felizes. Felizes à séria. Será que levam a felicidade à letra? Uma por uma? É impossível ser-se feliz sem usufruir do prazer que é comer. Há pessoas que comem só porque têm de se aguentar em pé. Não sabem retirar o que há de bom em cada um desses momentos. Numa altura em que somos bombardeados diariamente por programas de culinária na televisão, é difícil não prestarmos atenção a um dos temas que mais une as pessoas. É mesmo o único motivo que faz com que as pessoas se sentem à volta de uma mesa.
Aproveitem e sejam felizes no norte, no centro, no sul, nas ilhas. Não interessa onde. Um bom prato de comida e uma boa conversa são as únicas coisas que precisa para o momento ser perfeito.
Mafalda Ramos







Fotografia: Danny Ivan

1 comentário:

  1. Grande Mafalda. Isto é que se chama sentir a comida e o bairrismo até o âmago . Que crónica sentida e apaixonada além de excepcionalmente bem escrita. Vivencia-se cada uma das tuas palavras e saboreia-se cada uma delas. Adorei!!!

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